quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O medo e o terror não vencerão a esperança

As brasileiras e brasileiros estão no rumo de mais uma decisão democrática, popular e participativa que continuará tendo um sentido de construção de um processo instaurado pelo Presidente Lula no próximo domingo, 03 de outubro de 2010. Em 2002, a elite se unia para difamar Lula como analfabeto, como operário, como retirante, como aquele que levaria o país ao caos. Podemos lembrar a emblemática afirmação da atriz Regina Duarte no programa de José Serra, do PSDB, de que “tinha medo” do PT e de Lula. Uma típica demonstração de que estava a serviço da classe dominante, dos que defendiam o projeto neoliberal de desconstrução da soberania da nação.

Foram 500 anos de história contada e recontada no Brasil de barbárie, de etnocídio, de descaso com a “coisa pública”. Influenciados pelos aparelhos ideológicos da classe dominante, as pessoas tinham receio de mostrar que era possível outro tipo de governo, outra forma de governança pública. Por isso, em 2002, elegemos Lula como o primeiro Presidente da República que realmente viveu as mazelas da fome, do subemprego, da falta de oportunidades.

Evidentemente que o processo de ruptura começou nestes dois mandatos de Lula. Não podemos deixar de evidenciar as mudanças ocorridas, em especial, na área social. Mas, 500 anos de história não se muda em 8 anos. O governo Lula foi um recomeço da esperança que amordaçada ainda começou a dar sinais de vida diante dos muitos anos de medo e de terror implantados no imaginário coletivo do povo brasileiro. Podemos lembrar do medo e do terror que se fazia quando se falava de “comunistas” que eram definidos como “aqueles que matavam criancinhas inocentes” ou que “eles vão tomar a minha casinha”. A classe dominante em 500 anos conseguiu criar determinados imaginários que serviam aos interesses de perpetuação da elite no poder como se fossem “verdades” sagradas vindas do próprio Deus.

E, agora, mais uma vez, o confronto é visível. A raiva, a violência simbólica e real, o ódio, a destemperança e as mentiras contra a esperança se fazem presente no cenário político. A elite que sempre viveu às custas da desesperança, da exploração, do medo, do terror, da mentira, da violência, agora, volta a atacar. Os dois mandatos de Lula conseguiram destabiliza-los, tirando-lhes a paciência mórbida que sempre tiveram, já que era comum que os filhos da miséria votassem neles, pois sempre foram os “pais” para os que se encontravam na pobreza. Cuidar dos pobres era a intenção primordial da elite que teologicamente seguia os momentos de “dar esmolas” ao povo. Com Lula, um novo jeito de pensar o problema da pobreza se inicia. Não se trata de cuidar dos pobres e miseráveis, mas de tirá-los da condição em que se encontravam. Não se trata de “dar esmolas”, mas de promover políticas públicas que possibilitassem todos e todas terem acesso a educação de qualidade, saúde pública, ao emprego (foram mais de 14 milhões de empregos criados), entre outras tantas ações realizadas.

Daí a revolta da elite. Evidentemente que vemos alguns pequeno-burgueses (aqueles que são economicamente pobres, mas que defendem com unhas e dentes o pensamento da elite... são os que reproduzem o pensamento da classe dominante, mesmo sem ser classe dominante) ainda “revoltosos” reproduzirem discursos anacrônicos de Arnaldo Jabor e Cia Ltda da mídia. Eles são necessários para compor a massa de manobra que se coloca a serviço dos interesses dominantes. Por isso, são os primeiros a se revoltar com Lula, com Dilma e com o PT. São os primeiros a atacar. O referencial teórico que lhes dá subsistência é a Revista Veja e a Globo, reais representantes da mídia fascista brasileira. Falam de corrupção com a boca cheia, como se o problema tivesse iniciado no governo Lula e que o PT tivesse tido a proeza criacionista da corrupção. Por outro lado, ao mesmo tempo, caem num esquecimento mórbido de que no governo passado o Brasil foi leiloado pela política malfadonha do neoliberalismo, como por exemplo, a venda/doação da Vale do Rio Doce.

Estamos assistindo nestes últimos dias de campanha a um espetáculo digno das arenas romanas. Dilma é constantemente atacada. O ódio é tanto que inventam fatos para tentar tirar-lhe pontos e a possibilidade real de vitória no 1º Turno o que seria uma derrota histórica da elite. Mas, pela primeira vez na história, o resultado disso está servindo para mostrar aos antigos “donos do poder” que a população brasileira não engole tão facilmente esses discursos raivosos. Dilma se tornou a grande esperança de ser a primeira mulher a governar o Brasil seguindo os rumos já iniciados no governo Lula que se encontra com mais de 80% (ótimo e bom). A possibilidade de 2º turno é bem remota e isso é o que vem frustrando a dilacerada oposição que também tenta usar a imagem de Lula. É uma comédia, ver aqueles que sempre foram contrários do “analfabeto” Lula (o “analfa” que mais universidades federais fez na história do Brasil) mostrar sua imagem, seus feitos e ainda defendem a política de continuidade.

Dilma não é uma “analfa”, não foi “operária”, não é uma “retirante”, mas, para os discursos antagônicos da oposição, ela foi “terrorista” de guerrilha urbana, é a favor do “aborto”, é um “fantoche” de Lula, dentre outras. São esses os argumentos da elite? Quem realmente é o terrorista nesta história toda? Quem realmente quer continuar fazendo o Brasil crescer de forma sustentável? Eu tenho medo, um grande medo... O medo de ver novamente o Brasil sendo privatizado, do Brasil sendo desrespeitado internacionalmente, do Brasil perder o orgulho e de não termos a possibilidade de ascensão social com as políticas neoliberais que poderão novamente “doar” para o mercado uma empresa pública como a Petrobrás.

Poderia continuar minha reflexão, mas diante da falta de argumentos da elite apenas quero ressaltar uma questão que a história me fez acreditar, a saber: “O medo e o terror não vencerão a esperança”.

Claudemiro Godoy do Nascimento
Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação/Unicamp. Doutor em Educação/UnB. Professor da Universidade Federal do Tocantins – UFT/Campus de Arraias e do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Continuar mudando, continuar acreditando...


Em 2004 escrevi um texto: A história de como dormi petista e acordei sem partido. Continuo sem partido oficial. Foram momentos internos de luta contra grupos que se instalaram dentro do PT e que proporcionaram escândalos e que negaram a história de luta de um partido popular. Por mais que tenha sido enfático nas críticas reconheço que estava errado. O PT não pode se resumir a determinadas figuras. O PT é maior que tudo isso. Tomei a decisão de retornar ao PT, pois até hoje não se apresentou um projeto político mais coerente do que este. A esquerda brasileira não tem a capacidade de se organizar em torno de um projeto unificado, acabam morrendo, haja vista os vários candidatos a presidência da esquerda, tais como: PSTU, PCO, PCB e PSOL. O PT, pelo contrário, percebeu que para governar e propor mudanças era preciso fazer alianças, mas quem determina as regras é o partido e a equipe de governo. Foi assim com Lula, será assim com Dilma.

Por isso, não poderia como militante e intelectual me negligenciar neste momento histórico da política brasileira onde, depois de um retirante e operário como Presidente, tem a oportunidade de eleger a primeira mulher Presidente do Brasil. Não há como negar os dois mandatos do governo Lula. Aliás, nem mesmo a oposição tem essa coragem. Não possuem coragem e nem fundamentação para contestar e comparar os anos de governo FHC e os anos do governo Lula. Aliás, uma oposição que a todo instante entra em contradições, que não tem programa de governo, que não tem projeto popular. Mas como posso querer que a oposição tenha projeto popular sendo que são eles os representantes da velha oligarquia rural e aristocracia urbana? “Sem chance” como diz sempre um velho amigo.

Como não sou positivista e, muito menos, weberiano como o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e porque acredito que é possível fazer ciência com a prática, com o engajamento político e com uma visão de mundo comprometida com as causas populares, é que venho por meio destas pequenas e singelas palavras assumir minha opção por Dilma. Opção que acredita na força coletiva do voto popular. Por mais que tenhamos “Tiriricas” e “Malufs em São Paulo e em vários estados da federação, a população brasileira nos dá uma lição de consciência em não mais aceitar determinados candidatos que utilizam o cargo público para interesses particulares. Não podemos acreditar no velho discurso: “Eu voto na pessoa, não voto no partido”. Esse discurso tem contradições profundas e ideológicas que podemos desocultar. Toda pessoa representa uma ideologia, mesmo que ela diga que não tenha, a própria negação é um ato político e ideológico. As pessoas estão associadas ao partido que representa uma ideologia, que possui uma visão conjuntural de Estado e de mundo. Votar na pessoa significa votar no individuo que não presta conta de seus atos aos seus pares, votar na pessoa que tem um partido significa votar no coletivo que cobra esse representante a todo instante e o mesmo presta conta de seus atos. Não existe nada mais conservador do que este pensamento e precisamos mudar isso por meio de uma educação política. Mas, gostaria de apresentar os motivos que me levam a acreditar em Dilma, a saber:

Primeiro, Dilma significa a continuidade de um projeto político popular. Ela não é um factóide de Lula como destacam os sem destaque do PSDB e DEM. Pelo contrário, Dilma representa a imagem de um projeto político de poder que é necessário enquanto transição para termos uma sociedade possível, mais justa e igualitária.

Segundo, os outros candidatos não disseram por que estão pleiteando a Presidência da República. Caíram no factóide da denúncia sem provas e porque não dizer que armaram essas denúncias? A esquerda ortodoxa ainda não percebeu que para conseguirmos alcançar uma sociedade comunal precisamos da transição ao socialismo e a passagem do capitalismo selvagem do neoliberalismo para o socialismo também é necessário de uma transição. Transição que estamos começando a verificar no governo Lula, ou seja, “pela primeira vez na história desse país” estamos assistindo no plano real o que realmente é um “Estado de Bem-Estar Social”. Entre voltar ao neoliberalismo com a regulação do mercado, com as privatizações, com as novas Vales e/ou Telecomunicações sendo leiloadas a preço de banana, prefiro, democraticamente, optar politicamente pelo Estado de Bem-Estar Social de Lula e Dilma.

Terceiro, os índices são evidentes. O povo brasileiro jamais teve tanta esperança na mudança, na transformação real (Marx) e não mais ideal (Hegel). Podemos discordar nas questões pontuais com algumas atitudes do governo Lula, como, por exemplo: nas barragens de Xingu e na transposição do Rio São Francisco ou, então, no porque da não retomada da Vale do Rio Doce ao povo brasileiro. Mas, não podemos negar, milhões de brasileiros saíram dos porões da vida, da miséria. Hoje, possuem sonhos e esperanças. Há mais redistribuição de renda, ainda não é a que queremos, mas devemos aprender a respeitar a paciência histórica... e ela já chegou.

Quarto, o governo Lula representou um retorno da luta de classes. Haja vista as batalhas que travamos com os conservadores políticos do DEM, velhos representantes dos interesses agrários, hoje associados ao agronegócio e ao hidronegócio. Se o governo lhe dá algo com uma mão, lhes retira algo com duas ou três mãos, mas é preciso avançar neste bom combate. Trata-se de uma estratégia política, de que Estado queremos!

Ontem, no Programa Roda Viva, novamente vi e escutei o sociólogo Demétrio Magnoli que mais uma vez mostrou ocultamente suas posições contrárias ao atual governo. Mostrou seu rancor para com os movimentos negros e porque não estender a todos os movimentos sociais populares. Evidentemente que o respeito, (mas discordo radicalmente de suas posições unilaterais e ideológicas) enquanto intelectual orgânico das elites e da classe dominante, politicamente fracassada, com o candidato Serra, sem programa, sem conteúdo, sem nada. Ontem, acreditei que o século XXI nos reservará uma mudança histórica de luta contra as elites, os enganadores do povo, os representantes de uma elite... é o momento de enfraquecer ainda mais essa classe dominante.

Por fim, concordo com Leonardo Boff que afirmou em seu mais recente artigo e conclamo: é hora de consolidar a ruptura histórica operada pelo PT. Houve uma mudança e ela precisa dar continuidade. Por isso, Dilma representa essa continuidade que não se trata de continuísmo. O continuísmo tende a conservar os interesses de alguns, de uma pequena parcela da elite. A continuidade é um desejo popular, do povo, em querer caminhar rumo as transformações estruturais da sociedade brasileira. O Brasil quer seguir em frente na consolidação de uma ruptura histórica. São milhões de Lulas e de Dilmas, de homens e mulheres, acreditando sempre...

Claudemiro Godoy do Nascimento
Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação/Unicamp. Doutor em Educação/UnB. Professor da Universidade Federal do Tocantins – UFT/Campus de Arraias e do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional. E-mail: claugnas@uft.edu.br

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Consolidar a ruptura histórica operada pelo PT

Leonardo Boff*

Para mim o significado maior desta eleição é consolidar a ruptura que Lula e o PT instauraram na história política brasileira. Derrotaram as elites econômico-financeiras e seu braço ideológico, a grande imprensa comercial. Notoriamente, elas sempre mantiveram o povo à margem da cidadania, feito, na dura linguagem de nosso maior historiador mulato, Capistrano de Abreu, "capado e recapado, sangrado e ressangrado". Elas estiveram montadas no poder por quase 500 anos. Organizaram o Estado de tal forma que seus privilégios ficassem sempre salvaguradados. Por isso, segundo dados do Banco Mundial, são aquelas que, proporcionalmente, mais acumulam no mundo e se contam, política e socialmente, entre as mais atrasadas e insensíveis. São vinte mil famílias que, mais ou menos, controlam 46% de toda a riqueza nacional, sendo que 1% delas possui 44% de todas as terras. Não admira que estejamos entre os países mais desiguais do mundo, o que equivale dizer, um dos mais injustos e perversos do planeta.

Até a vitória de um filho da pobreza, Lula, a casa grande e a senzala constituíam os gonzos que sustentavam o mundo social das elites. A casa grande não permitia que a senzala descobrisse que a riqueza das elites fora construída com seu trabalho superexplorado, com seu sangue e suas vidas, feitas carvão no processo produtivo. Com alianças espertas, embaralhavam diferentemente as cartas para manter sempre o mesmo jogo e, gozadores, repetiam: "façamos nós a revolução antes que o povo a faça". E a revolução consistia em mudar um pouco para ficar tudo como antes. Destarte, abortavam a emergência de outro sujeito histórico de poder, capaz de ocupar a cena e inaugurar um tempo moderno e menos excludente. Entretanto, contra sua vontade, irromperam redes de movimentos sociais de resistência e de autonomia. Esse poder social se canalizou em poder político até conquistar o poder de Estado.

Escândalo dos escândalos para as mentes súcubas e alinhadas aos poderes mundiais: um operário, sobrevivente da grande tribulação, representante da cultura popular, um não educado academicamente na escola dos faraós, chegar ao poder central e devolver ao povo o sentimento de dignidade, de força histórica e de ser sujeito de uma democracia republicana, onde "a coisa pública", o social, a vida lascada do povo ganhasse centralidade. Na linha de Gandhi, Lula anunciou: "não vim para administrar, vim para cuidar; empresa eu administro, um povo vivo e sofrido eu cuido". Linguagem inaudita e instauradora de um novo tempo na política brasileira. O "Fome Zero", depois o "Bolsa Família", o "Crédito Consignado", o "Luz para Todos", o "Minha Casa, minha Vida, o "Agricultura familiar, o "Prouni", as "Escolas Profissionais", entre outras iniciativas sociais permitiram que a sociedade dos lascados conhecesse o que nunca as elites econômico-financeiras lhes permitiram: um salto de qualidade. Milhões passaram da miséria sofrida à pobreza digna e laboriosa e da pobreza para a classe média. Toda sociedade se mobilizou para melhor.

Mas essa derrota infligida às elites excludentes e anti-povo, deve ser consolidada nesta eleição por uma vitória convincente para que se configure um "não retorno definitivo" e elas percam a vergonha de se sentirem povo brasileiro assim como é e não como gostariam que fosse. Terminou o longo amanhecer.

Houve três olhares sobre o Brasil. Primeiro, foi visto a partir da praia: os índios assistindo a invasão de suas terras. Segundo, foi visto a partir das caravelas: os portugueses "descobrindo/encobrindo" o Brasil. O terceiro, o Brasil ousou ver-se a si mesmo e aí começou a invenção de uma república mestiça étnica e culturalmente que hoje somos. O Brasil enfrentou ainda quatro duras invasões: a colonização que dizimou os indígenas e introduziu a escravidão; a vinda dos povos novos, os emigrantes europeus que substituíram índios e escravos; a industrialização conservadora de substituição dos anos 30 do século passado mas que criou um vigoroso mercado interno e, por fim, a globalização econômico-financeira, inserindo-nos como sócios menores.

Face a esta história tortuosa, o Brasil se mostrou resiliente, quer dizer, enfrentou estas visões e intromissões, conseguindo dar a volta por cima e aprender de suas desgraças. Agora está colhendo os frutos.

Urge derrotar aquelas forças reacionárias que se escondem atrás do candidato da oposição. Não julgo a pessoa, coisa de Deus, mas o que representa como ator social. Celso Furtado, nosso melhor pensador em economia, morreu deixando uma advertência, título de seu livro A construção interrompida (1993): "Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta no devir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-Nação" (p.35). Estas não podem prevalecer. Temos condições de completar a construção do Brasil, derrotando-as com Lula e as forças que realizarão o sonho de Celso Furtado e o nosso.

Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Pelo limite da propriedade da terra



Dom Pedro Casaldáliga
Bispo Emérito de São Félix do Araguaia

Um santo profeta de antigamente dizia que Deus criou o Universo e o diabo inventou a propriedade. "A Terra é de Deus e Ela dá a todos", repete o povo. Nos quatro primeiros séculos da Igreja cristã, muitas vozes proféticas condenaram o pecado do lucro, da acumulação, da absolutização da propriedade. Seguiam o exemplo de Jesus, tão explicito frente ao dinheiro e a acumulação. Ele nos ensinou que o Pai é "nosso" e que o pão deve ser "nosso". Ele próprio se faz partilha e comunhão.

Depois dessa primeira época, banhada em sangue mártir, a Igreja de Jesus tem cometido muitas alianças espúrias com o dinheiro e o poder. Lamentavelmente ela tem ajudado com palavras, com feitos e com estruturas, a fazer da propriedade um direito "sagrado". Também ela tem ajudado, muitas vezes, a condenar a propriedade absoluta e a reivindicar a hipoteca social que pesa sobre toda a propriedade.

A propriedade é um direito e também um dever. A propriedade capitalista, por definição, acumula e exclui, justifica a fome, a miséria, a depredação e o ecocídio, o armamentismo e as guerras...

Frente à propriedade absoluta, há tempo que vêm surgindo vozes e ações de protesto, de revolta, de propostas justas e alternativas. Concretamente no nosso Brasil (e em toda nossa América). Este Brasil, que poderia ser uma benção, ocupa o segundo lugar mundial na concentração da propriedade fundiária. É campeão em latifúndio e em desigualdade social.

Está na hora de condenar o latifúndio como uma iniquidade. Está na hora de fazer da reforma agrária uma realidade e não mais um sarcasmo de promessas e subterfúgios. Proclamamos, com indignação e com esperança, que é possível, necessário e urgente acabar com o latifúndio. Todo latifúndio é injusto. E só se fará justiça ao povo do campo com uma reforma agrária e agrícola de terra distribuída e estabelecidos os limites máximos de toda propriedade.

Estamos em campanha por um outro modelo para o campo brasileiro. Atualizaremos e radicalizaremos uma autêntica revolução no campo. Pelo Deus da vida e da Terra. Militantes e mártires, que vêm dando seu suor e seu sangue, nos comprometem e nos acompanham. Exigimos do Congresso e do Judiciário o cumprimento da Constituição que dispõe que "a propriedade atenderá sua função social".

Queremos fazer do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo um Fórum permanente e verdadeiramente nacional. E, concretizando nossa luta e reivindicação, assumimos, com a teimosia que for necessária, e em união com todas as forças vivas, a Campanha pelo Limite da Propriedade da Terra.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Plebiscito pelo limite da Terra

Frei Betto*

Adital - Entre 1 e 7 de setembro o Fórum Nacional da Reforma Agrária e Justiça no Campo promoverá, em todo o Brasil, o plebiscito pelo limite da propriedade rural. Mais de 50 entidades que integram o Fórum farão da Semana da Pátria e do Grito dos Excluídos, celebrado todo 7 de setembro, um momento de clamor pela reforma fundiária em nosso país.

Vivem hoje na zona rural brasileira cerca de 30 milhões de pessoas, pouco mais de 16% da população do país. O Brasil apresenta um dos maiores índices de concentração fundiária do mundo: quase 50% das propriedades rurais têm menos de 10 ha (hectares) e ocupam apenas 2,36% da área do país. E menos de 1% das propriedades rurais (46.911) têm área acima de 1 mil ha cada e ocupam 44% do território (IBGE 2006).

As propriedades com mais de 2.500 ha são apenas 15.012 e ocupam 98,5 milhões de ha: 28 milhões de hectares a mais do que quase 4,5 milhões de propriedades rurais com menos de 100 ha.

Diante deste quadro de grave desigualdade, não se pode admitir que imensas propriedades rurais possam pertencer a um único dono, impedindo o acesso democrático à terra, que é um bem natural, coletivo, porém limitado.

O objetivo do plebiscito é demonstrar ao Congresso Nacional que o povo brasileiro deseja que se inclua na Constituição um novo inciso limitando a propriedade da terra - princípio adotado por vários países capitalistas - a 35 módulos fiscais. Áreas acima disso seriam incorporadas ao patrimônio público e destinadas à reforma agrária.

O módulo fiscal serve de parâmetro para classificar o tamanho de uma propriedade rural, segundo a lei 8.629 de 25/02/93. Um módulo fiscal pode variar de 5 a 110 ha, dependendo do município e das condições de solo, relevo, acesso etc.. É considerada pequena propriedade o imóvel com o máximo de quatro módulos fiscais; média, 15; e grande, acima de 15 módulos fiscais.

Um limite de 35 módulos fiscais equivale a uma área entre 175 ha (caso de imóveis próximos a capitais) e 3.500 ha (como na região amazônica). Apenas 50 mil entre as cinco milhões de propriedades rurais existentes no Brasil se enquadram neste limite. Ou seja, 4,950 milhões de propriedades têm menos de 35 módulos fiscais.

O tema foi enfatizado pela Campanha da Fraternidade 2010, promovida pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Todos os dados indicam que a concentração fundiária expulsa famílias do campo, multiplica o número de favelas e a violência nos centros urbanos. Mais de 11 milhões de famílias vivem, hoje, em favelas, cortiços ou áreas de risco.

Nos últimos 25 anos, 1.546 trabalhadores rurais foram assassinados no Brasil; 422 presos; 2.709 famílias expulsas de suas terras; 13.815 famílias despejadas; e 92.290 famílias envolvidas em conflitos por terra! Foram registradas ainda 2.438 ocorrências de trabalho escravo, com 163 mil trabalhadores escravizados.

Desde 1993, o Grupo Móvel do Ministério do Trabalho libertou 33.789 escravos. De 1.163 ocorrências de assassinatos, apenas 85 foram a julgamento, com a condenação de 20 mandantes e 71 executores. Dos mandantes, somente um se encontra preso, Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, um dos mandantes da eliminação da irmã Dorothy Stang, em 2005.

Tanto o plebiscito quanto o abaixo-assinado visam a aprovar a proposta de emenda constitucional (PEC 438) que determina o confisco de propriedades onde se pratica trabalho escravo, bem como limites à propriedade rural. As propriedades confiscadas seriam destinadas à reforma agrária.

Embora o lobby do latifúndio apregoe as "maravilhas" do agronegócio, quase todo voltado à exportação e não ao mercado interno, a maior parte dos alimentos da mesa do brasileiro provém da agricultura familiar. Ela é responsável por toda a produção de verduras; 87% da mandioca; 70% do feijão; 59% dos suínos; 58% do leite; 50% das aves; 46% do milho; 38% do café; 21% do trigo.

A pequena propriedade rural emprega 74,4% das pessoas que trabalham no campo. O agronegócio, apenas 25,6%. Enquanto a pequena propriedade ocupa 15 pessoas por cada 100 ha, o agronegócio, que dispõe de tecnologia avançada, somente 1,7 pessoas.

Mais informações e para assinar abaixo-assinado: www.limitedaterra.org.br/

[Autor de "Diário de Fernando - nos cárceres da ditadura militar brasileira" (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org -Twitter:@freibetto

Copyright 2010 - FREI BETTO - Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato - MHPAL - Agência Literária (mhpal@terra.com.br)
* Escritor e assessor de movimentos sociais

sábado, 14 de agosto de 2010

Charles de Foucauld


J. B. Libanio*

Adital - Toda conversão fascina. Ainda criança, Charles de Foucauld perde bem cedo os pais. Aristocrata e rico, esbanja a fortuna em vida desregrada. Tudo anunciava um final perdido. Militar e aventureiro pela Argélia. A graça bate-lhe com força. Experimenta a severa vida de trapista. O sino o arranca de madrugada da cama para rezar. Envolvido todo o dia pelo silêncio, alterna oração e trabalho, contemplação e ação. Mas o Espírito não o queria lá. Inquietava-o em busca de algo diferente, original. De novo na Argélia, vive a solidão. Enfrenta a rudeza dos desertos. Tudo nele soava gratuidade. Nem sequer pregava o evangelho na explicitação da fé cristã. Preferia ser o evangelho vivo, encarnado na pessoa, nos gestos, nas ações a anunciá-lo em palavras. Tão diferente de missionários europeus, que saiam de seus países convencidos de que só eles tinham a verdade e atropelavam todas as outras culturas, impingindo-lhas a própria como se só nela o evangelho se encarnasse.

Depois dele, arrancado da vida de maneira violenta por fanáticos, vieram os irmãos e as irmãzinhas para perpetuar-lhe o espírito de serviço livre, despretensioso e de pura gratuidade.

A experiência de Deus explodiu tão forte dentro dele que depois dela já não sabia viver sem ser para Ele. Despojou-se, diria Paulo, do homem velho que vivera na fase francesa. Agora lhe habitava o homem novo. Ele o lapidou na espiritualidade do Jesus de Nazaré. No físico do lugar e no espírito de Jesus camponês e artesão, ele aprendeu a ser pobre, viver como pobre e junto aos pobres. Nada mais do que isso. As ambições maiores ficavam para outros. Ele não sabia outra coisa que, de novo como Paulo, senão viver como Jesus no serviço humilde, desprendido. O anúncio fazia antes pela vida que pelos discursos.

Arrisca a vida no meio de muçulmanos sem outra pretensão que estar lá. E se alguém se espantasse daquela vida despojada, humilde, pobre e servidora e lhe perguntasse pelo segredo, então sim, falaria de Jesus. Até lá guardava no interior o mistério do nazareno como pérola a não ser lançada na publicidade vazia, como se faz tanto hoje. Entre o Jesus publicado nos tetos ao calado durante 30 anos em Nazaré, preferiu a este. E impregnou a espiritualidade desse silêncio meditativo e de serviço pobre.

Pelos evangelhos apenas sabemos algo sobre a vida de Nazaré. Foucauld não se contentou com tal escassez. Os místicos descobrem maravilhas para além dos escritos. E transmitiu experiência tão forte que até hoje os seus seguidores nos encantam pela autenticidade de vida, de entrega, de simplicidade, de coragem evangélica. A espiritualidade de Foucauld se expande para além dos membros da Fraternidade e se faz alimento para tantos e tantos cristãos. Nela transparece tal evangelismo que apenas acreditamos que exista num mundo repleto de ruídos, banalidades, vulgaridades e exterioridades. Nela reinam o silêncio, a profundidade, a essencialidade e a interioridade.

[Confira também de JB Libanio: Deus e os homens: os seus caminhos. Vozes, 1990. http://www.jblibanio.com.br/].

* Padre jesuíta, escritor e teólogo. Ensina na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte, e é vice-pároco em Vespasiano.

domingo, 8 de agosto de 2010

Congresso absolve MST


Frei Betto
Correio Braziliense, Sexta-feira, 30 de julho de 2010,k p. 15.

O MST jamais desviou dinheiro público para realizar ocupações de terra — eis a conclusão da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito(CPMI), integrada por deputados federais e senadores, instaurada para apurar se havia fundamento nas acusações, orquestradas pelos senhores do latifúndio, de que os movimentos comprometidos com a reforma agrária se apoderaram de recursos oficiais.

Em oito meses, foram convocadas 13 audiências públicas. As contas de dezenas de cooperativas de agricultores e associações de apoio à reforma agrária foram exaustivamente vasculhadas. Nada foi apurado. Segundo o relator, o deputado federal Jilmar Tatto (PT-SP), “foi uma CPMI desnecessária”.

Não tão desnecessária assim, pois provou, oficialmente, que as denúncias da bancada ruralista no Congresso são infundadas. E constatou-se que entidades e movimentos voltados à reforma fundiária desenvolvem sério trabalho de aperfeiçoamento da agricultura familiar e qualificação técnica dos agricultores.

O que os denunciantes buscavam era reaquecer a velha política — descartada pelo governo Lula — de criminalizar os movimentos sociais brasileiros. Esse tipo de terrorismo tupiniquim a história de nosso país conhece bem: Monteiro Lobato foi preso por propagar que havia petróleo no Brasil (o que prejudicou os interesses norte-americanos); foram chamados de comunistas os que defendiam a criação da Petrobras; e, de terroristas, os que lutavam contra a ditadura e pela redemocratização do país.

A comissão parlamentar significou, para quem insistiu em instaurá-la, um tiro saído pela culatra. Ficou claro para deputados e senadores bem intencionados que é preciso votar, o quanto antes, o projeto de lei que prevê a desapropriação de propriedades rurais que utilizam trabalho escravo em suas terras. E resolver, o quanto antes, a questão dos índices de produtividade da terra.

A investigação trouxe à luz não a suposta bandidagem do MST e congêneres, como acusavam os senhores do latifúndio, e sim a importância desses movimentos no atendimento à população sem terra. Eles cuidam da organização de acampamentos e assentamentos e, assim, evitam a migração que reforça, nas cidades, o cinturão de favelas e o contingente de famílias e pessoas desamparadas, sujeitas ao trabalho informal, ao alcoolismo, às drogas, à criminalidade.

Segundo Jilmar Tatto, os inimigos da reforma agrária “fizeram toda uma carga, um discurso muito raivoso, colocaram dúvidas em relação ao desvio de recursos públicos e perceberam que a montanha tinha parido um rato. Porque não havia desvio nenhum. As entidades e o governo abriram todas as suas contas. Foram transparentes e, em nenhum momento, conseguiu-se identificar um centavo de desvio de recurso público. Foram desmoralizados (os denunciantes), e resolveram se ausentar dos trabalhos da CPMI. (...) Foi um trabalho produtivo, no sentido de deixar claro que não houve desvio de recurso público para fazer ocupação de terras no Brasil. O que houve foi a oposição fazendo uma carga muito grande contra o governo e o MST”.

Os parlamentares sensíveis à questão social no Brasil se convenceram, graças ao trabalho da comissão, de que é preciso aumentar os recursos para a agricultura familiar; garantir que a legislação trabalhista seja aplicada na zona rural; e incentivar sempre mais os plantios alternativos e os alimentos orgânicos, sobre cuja qualidade nutricional não paira a desconfiança que pesa sobre os transgênicos. E, sobretudo, intensificar a reforma agrária no país, desapropriando, como exige a Constituição, as terras improdutivas.

Dados recentes mostram que, no Brasil, se ocupam 3 milhões de hectares com a lavoura de arroz e 4,3 milhões com feijão. Segundo o geógrafo Ricardo Alvarez, se compararmos com os 851 milhões de hectares que formam este colosso chamado Brasil veremos que as cifras são raquíticas. Apenas 0,85% do território nacional está ocupado com o cereal e a leguminosa. Um aumento de apenas 20% na área plantada significaria passar de 7,3 para 8,7 milhões de hectares, com forte impacto na alimentação do povo brasileiro.

Para Alvarez, o aumento da produção levaria à queda de preços, ruim para o produtor, bom para os consumidores. Caberia, então, ao governo implantar uma política de ampliação da produção de alimentos, garantir preços mínimos, forçar a ocupação da terra, combater o latifúndio, gerar empregos no campo e atacar a fome. Ação muito mais eficiente, graças aos 20% de acréscimo na área plantada, do que o assistencialismo alimentar.

O latifúndio ocupa, hoje, mais de 20 milhões de hectares com soja. No início dos anos 1990, o número beirava os 11,5 milhões. A cana-de-açúcar foi de 4,2 para 6,5 milhões de hectares no mesmo período. Arroz e feijão sofreram redução da área plantada. Hoje o brasileiro consome mais massas do que a tradicional combinação de arroz e feijão, de grande valor nutritivo.

Alvarez conclui: “Não faltam terras no Brasil, faltam políticas de distribuição delas. Não faltam empregos, falta vontade de enfrentar a terra improdutiva. Não falta comida, falta direcionar a produção para atender as necessidades básicas de nossa população”.